"Afinal, que
crime concreto foi esse? Onde, quando e como é que eu o pratiquei?
Exatamente, que factos criminosos devo refutar, que provas devo desmentir?
Não sei, nem o Ministério Público (MP) sabe, até porque não cometi crime
algum!"
José Sócrates, preso preventivamente há seis meses no
Estabelecimento Prisional de Évora, defende-se de novo.
Numa carta enviada ao
fundador do PS António Campos e divulgada pela SIC, o ex-governante admite a
possibilidade de ser condenado no âmbito da Operação Marquês, mas, diz, de
forma injusta e ilegal:
"Sem provas e sem factos é possível manter
alguém preso e talvez até condenado". Na carta refere que o MP "tem
uma teoria, acredita nela e parece convencido de que não precisa de provar
nada para me manter preso ou até para obter uma condenação".
"António Campos, querido
amigo:
Desculpa
responder tão tarde à tua amável carta e só agora agradecer as tuas palavras,
tão amigas. Obrigado, também, por me teres enviado o artigo que a advogada do
meu amigo eng. Carlos Santos Silva escreveu na revista da Ordem dos Advogados.
Já tinha ouvido falar nele, mas só agora o li.
O
título é divertido: “vamos a um supor”. Todavia, o que não tem graça, mesmo
graça nenhuma, são as “supostas” denúncias: buscas ilegais, interrogatórios
ilegais, detenções ilegais. E, claro, tudo isto é suposto ter acontecido sob a
direcção e comando de um Procurador da República, com o assentimento de um
chamado “juiz das liberdades", que é suposto ser o protector das garantias
dos cidadãos face a qualquer tentativa de abuso.
Tanto
abuso não é, pelos vistos, excepcional e até parece que fez escola, a avaliar
pelas tímidas e raras – embora honrosas – reacções. Infelizmente, chegamos a um
tempo em que tanta indiferença perante estes abusos das autoridades parece
confirmar que as garantias do Estado de Direito já não são vistas como a fonte
legitimadora da justiça penal, mas como relíquias formais ultrapassadas. Na
verdade, o actual debate sobre política criminal está dominado por uma
perspectiva conservadora – mais propriamente, reaccionária – que pretende
soluções que passam por erodir os princípios tradicionais do direito penal
democrático em troca de “investigações mais eficazes”. É um erro histórico:
quem julga que pode trocar liberdade por segurança sempre se enganou
rotundamente. A segurança nunca foi conseguida sem liberdade. Sem uma ordem
penal baseada na liberdade, nos direitos, nas garantias processuais, ninguém está seguro. Nunca
pensei que regressássemos a um tempo em que é necessário lembrar que quando a
acção penal ignora as barreiras que o Estado de Direito lhe coloca, de
proporcionalidade, de garantias de processo, de formalismo, o resultado será
sempre o terrorismo de Estado. Mas claro, tudo isto é um “supor”.
Pedes-me
que te fale do andamento do meu processo mas dele só posso referir-te o que
para aí se diz nas televisões e jornais. E não é pouca coisa, o que me obriga a
ir por partes e a descrever os principais desenvolvimentos, de forma concisa,
em cinco pontos essenciais:
1. Cinco meses sem acusação
Ao
fim de cinco meses em prisão preventiva, o nosso estimável Ministério Público
não teve ainda tempo para me apresentar os factos e muito menos asprovas dos crimes que me imputa. Pelos
vistos, não acha que seja já tempo para apresentar a acusação – que era legítimo esperar fosse
rápida, dada não só a relevância do processo, mas também pelo facto de terem
justificado a minha prisão com pretensas provas “sólidas”,
"concludentes" e "indesmentíveis". Bem sei, falam de
indícios, mas como é que pode haver indícios "fortes" se não se sabe
de quê?? Afinal, que crime concreto foi esse? Onde, quando e como é que eu o
pratiquei? Exactamente, que factos criminosos devo refutar, que provas devo
desmentir? Não sei, nem o Ministério Público sabe, até porque não cometi crime
algum. A única diferença é que o Ministério Público não se importa com isso.
Tem
uma teoria, acredita nela e parece convencido de que não precisa de provar nada
para me manter preso ou até para obter uma condenação.
2. A violação do segredo de justiça
Não
tenho, aliás, dúvidas que as constantes “fugas”, criminosas e seletivas ao
segredo de justiça têm precisamente tudo a ver com o vazio deste processo –
visam disfarçar o vazio, criando na opinião pública uma convicção generalizada
de ter eu praticado os crimes que o Ministério Público me imputa, dispensando-se
o Senhor Procurador de acrescentar às generalidades factos e provas.
No
início deste processo ficámos a saber que se pode prender sem factos e sem
provas; agora sabemos que é possível, sem factos e sem provas, manter alguém
preso; só faltava que, no final, ficássemos a saber o que julgávamos para
sempre afastado: que no nosso Estado, que queremos de Direito, é possível
condenar alguém sempre sem factos e sem provas.
Até
ver, a única coisa que o Ministério Público foi capaz de dizer é que a minha liberdade
implica um "perigo" de perturbação de inquérito (no entendimento do
Ministério Público, o exercício do direito de defesa face às campanhas de
difamação, em que ele próprio consente, é muito perturbador...); e que existe o
risco de que eu fuja. Não é só o sentido do ridículo que perderam, é também o
respeito pela inteligência de todos nós.
3. O facto novo
Há,
todavia, um facto novo que tem sido diligentemente ocultado, escondido, pelo
Ministério Público. É que, tendo a investigação recebido (na verdade, já as
tinha recebido há mais de um ano) as informações bancárias relativas às tão
referidas contas na Suíça, elas confirmam que em lado algum delas sou referido.
Nem como titular, co-titular, último beneficiário ou por qualquer outra forma
que me permitisse ter acesso, ou capacidade de dispor, agora ou no futuro,
desse dinheiro. Nada!
Este
facto tem sido propositadamente escondido porque põe em crise a exótica teoria
de que o dinheiro do meu amigo é, afinal, meu, e de que ele era apenas um
«testa de ferro». Ora, se assim fosse, não poderia haver um mas vários (pelo
menos mais um) «testas de ferro». Já são «testas» a mais para a delirante
imputação.
Este
é, portanto, o verdadeiro facto novo: depois de tanta busca, de tantas escutas,
de tantos interrogatórios, depois até da resposta à carta rogatória, a
investigação não só não prova nada do que afirma, como provou exactamente o
contrário: que o dinheiro pertence a outro ou a outros, que não é meu nem nunca
foi e que não posso, nem alguma vez pude, dispor dele.
4. Os métodos do Ministério Público
Os
métodos usados pelo Sr. Procurador não param de nos surpreender - o que, aliás,
só confirma a descrição feita no artigo da Drª Paula Lourenço. Começou, claro
está, com a minha detenção no aeroporto, um propositado espectáculo, que não
visou qualquer objectivo jurídico legítimo. Não foi uma acção da justiça, foi
uma deliberada encenação.
Depois,
veio o episódio do mail. A verdade é que durante dias alguém escondeu o mail em
que expressamente pedia para ser ouvido neste processo, para depois poderem
promover a minha prisão preventiva com base na fantástica teoria do
"perigo de fuga".
Finalmente,
para não me alongar neste ponto, surge a história da carta rogatória às
autoridades Suíças. O Sr. Procurador emitiu-a em Novembro de 2013 e a resposta,
chamada “final”, só chegou mais de um ano depois, em Fevereiro de 2015. Mas o
que é aqui extraordinário é que esta demora não se deveu a qualquer atraso das
autoridades Suíças. Ela resultou, isso sim, dos pedidos e da vontade do
procurador português. Já se duvida que o Ministério Público seja livre de
promover o retardamento dos inquéritos. Mas é certamente ilegítimo usar,
depois, a demora, que ele próprio provocou, para obter o prolongamento do prazo
de inquérito e, pior, usar essa demora para justificar a prisão preventiva com
base no perigo de perturbação do inquérito, quanto à recolha dessa mesma
informação! Foi este o logro: o Procurador pediu às autoridades Suíças que
retardassem a resposta que tinham pronta para, no momento da detenção, poder
dizer que estavam ainda a decorrer essas diligências rogatórias que os arguidos
podiam "perturbar".
5. O crime de corrupção
Quanto
a este crime de corrupção – e esta imputação, sem factos e sem provas, não
passa de um insulto – a situação a que o processo chegou é pura e simplesmente
patética. Os jornais reportam que a investigação se "concentra" agora
nas suspeitas sobre os contratos do TGV, da Parque Escolar, das construções
rodoviárias e nos negócios na Venezuela. Isto é: passados todos estes meses,
nem sequer sabem dizer onde foi cometido o crime, se no TGV, se nas escolas, se
nas estradas ou se em algo completamente diferente, talvez até num país
estrangeiro (já ouvi falar de vários, de Angola à Venezuela).
Será
perguntar demais em que país do Mundo foi praticado o crime de que me acusam?
E, quanto ao momento do crime, dizem agora que o período está "bem" delimitado: entre 2005 e 2011.
Extraordinário! A pergunta é esta: como é que alguém se pode defender de uma
imputação tão vaga, se a própria acusação não sabe dizer nem quando, nem onde,
nem em quê?!
Isto
diz-nos muito acerca da verdadeira origem desta investigação: ela não nasceu
para perseguir um crime, mas para me perseguir pessoalmente, foi a caça ao
homem – esta “Operação Marquês”.
Quem
imputa crimes sem fundamento, o que faz é ofender e insultar. Quem prende para
investigar e usa a prisão como única prova não só nega a justiça democrática,
mas coloca-a sob a horrível suspeita de funcionar como instrumento de
perseguição política. Felizmente, tudo isto não passa de um “supor”...
E
pronto, velho amigo, é isto. Claro que estou ansioso por poder voltar a
conversar contigo e com os nossos amigos sobre a política e a vida. Mas, por
favor, não te preocupes com o meu ânimo. Estou forte e confiante. Isto não me
tirou a alegria."
Abraça-te
com força
o
teu, muito teu amigo,
José
Sócrates
P.S.: Uma derradeira nota,
para comentar contigo estes mais recentes desenvolvimentos, da detenção de
Joaquim Barroca, aproveitada para reanimar a campanha de difamação contra mim,
imputando-me, enquanto Primeiro Ministro, e ao meu Governo, crimes de corrupção
em favor do Grupo LENA.
Essas
imputações, melhor dito, insinuações, são falsas, ultrajantes e absurdas: como
já disse, nunca intervim, nem diretamente nem indiretamente em nenhum dos
alegados concursos que têm vindo referenciados.
E
é igualmente falso que existisse especial proximidade entre mim e Joaquim
Barroca, com quem apenas me encontrei uma meia dúzia de vezes na vida.
Mas,
mais, a afirmação de que teria havido um favorecimento do Grupo LENA é não
apenas falsa, como absurda, incapaz de resistir ao confronto com os números –
em termos relativos, o Governo actual adjudicou a este Grupo mais empreitadas
de obras públicas do que o Governo socialista (0,36%, em 2012, contra 0,25%, em
2010, mantendo-se semelhante essa comparação para os anos de 2013 e 2014). No
que diz respeito a adjudicações por ajuste directo, encontramos a mesma relação
(10% da contratação do total da construção, entre Julho de 2011 e a presente
data; 7%, entre o fim de 2008 e Junho de 2011).
Fiquemos,
então, à espera dos próximos episódios deste folhetim de mau gosto e nenhum
senso.
|