"Quando comecei a ouvir falar da “lista VIP” das Finanças,
pensei, ingenuamente, que se poderia tratar de uma lista de personalidades a
quem seria concedido um tratamento fiscal de favor e excepção.
Mas, depois,
percebi que não era disso que se tratava: era uma lista de pessoas, sim
(políticos, empresários e outros “mediáticos”), relativamente aos quais a
Autoridade Tributária resolvera aplicar medidas de protecção do segredo fiscal —
o qual faz parte integrante do “direito à reserva da intimidade da vida privada”, que a Constituição
consagra no nº 1 do artº 26, como é próprio de um Estado de Direito digno desse
nome.
Mas então, perguntarão os demagogos armados em
falsos ingénuos, se são todos iguais perante a lei como é que alguns têm
direito a protecção do segredo e outros não? Resposta: justamente porque todos
devem ser iguais perante a lei. E, se nenhum funcionário das Finanças ou
qualquer jornalista do “Correio de Manhã” está interessado em saber qual a
situação fiscal do Zé dos Anzóis, imaginem o sem-fim de possibilidades que se
abrem ao “jornalismo de investigação” ou à simples tentação de devassa alheia,
se, em vez do Zé dos Anzóis, se tratar de um ministro ou qualquer outra figura
mediática! Porém, sucede que a Constituição não diz que todos têm direito à sua
privacidade, menos as figuras públicas: diz “todos” —
e “todos” são todos, sem excepção alguma. É
justamente, porque — e isto, sim, é que é intolerável — qualquer funcionário das Finanças
pode aceder aos dados de qualquer contribuinte (mas só os dados de alguns é que
despertam interesse e podem até ter valor comercial no mercado do jornalismo de
sarjeta), que, se não existe, devia existir a tal “lista VIP”. A expressão é
infeliz, mas a finalidade é clara: garantir que não existem contribuintes que, por
serem “mediáticos”, perdem o direito ao sigilo fiscal. Eu sou a favor da “lista
VIP”.
O verdadeiro escândalo aqui é que 140 funcionários das Finanças,
sem relação funcional alguma com os contribuintes em causa, tenham andado a
consultar os seus processos, apenas porque eles eram “mediáticos” (ou talvez
para outros fins mais sórdidos). Pode uma funcionária das Finanças consultar,
por exemplo, sete vezes o processo do Presidente da República, que não lhe
dizia respeito, porque tinha curiosidade em saber quais os seus rendimentos
declarados?
O verdadeiro escândalo é que 140 funcionários das Finanças, sem
relação funcional alguma com os contribuintes em causa, tenham andado a
consultar os seus processos
Todos temos obrigação de expor perante as Finanças a nossa
situação patrimonial e, em caso de dúvida, submetermo-nos a investigação sobre
a veracidade das declarações feitas, incluindo, para tal, a quebra do sigilo
bancário. Mas isso dever ficar entre nós e as Finanças, restrito à secção e aos
funcionários encarregados do nosso processo. A contrapartida é uma obrigação de
honra do Estado e um dever que a Constituição lhe impõe: eu tenho a obrigação
de expor a minha situação patrimonial às Finanças, mas estas não têm o direito
de a expor ao meu vizinho, a qualquer funcionário seu que não tenha nada a ver
com o assunto ou aos leitores do jornalismo populista e policial. Quanto aos
titulares de cargos políticos, eles já estão obrigados por lei a fazer uma
declaração patrimonial e de interesses no Tribunal Constitucional, e, em caso
de justificado interesse público, julgo que as Finanças devem esclarecer a
situação fiscal deles: se pagaram ou não os impostos devidos, se têm processos
contenciosos em curso com o fisco, etc. Mas diferente disso é permitir o acesso
a todos os dados da sua vida patrimonial: que dívidas e créditos têm, quanto
gastam na educação dos filhos, que pensões de alimentos pagam, que tipo de
despesas deduzem, etc. Por muito que custe ao populismo reinante, exercer
funções públicas não torna ninguém suspeito ou exposto a nu, por inerência de
funções. Qualquer dia, sós os santos, os indigentes ou os idiotas vaidosos é
que estarão disponíveis para nos governar…
Segundo o sindicato dos funcionários
tributários, o director da AT, “porque é um homem sério”, demitiu-se por via da
existência da “lista VIP” que lhe terão superiormente imposto e dos processos
disciplinares mandados instaurar aos 140 funcionários que, indevidamente,
acederam aos dados da tal lista. Eu suspeito que ele, sendo um homem sério, se demitiu
sim pela falta de solidariedade do Governo, ao negar e repudiar tal lista, como
se ela queimasse. Um governo que tivesse coragem teria defendido a existência
da lista, quer soubesse dela quer não, e teria explicado a sua necessidade. Mas
não era fácil, eu sei: cair-lhe-ia imediatamente em cima, como caiu mesmo
assim, o coro do politicamente correcto de toda a oposição e de todos os
demagogos de serviço. Apesar disso, a atitude do Governo neste caso, em
especial por parte do primeiro-ministro, foi de uma falta de dignidade
chocante. Entregar aos cães um funcionário superior que terá feito o que a sua
consciência e o seu dever lhe impunham — defender contribuintes contra a devassa pública — é de uma hipocrisia política imperdoável. E, mais ainda, quando
tal é feito por parte de quem ainda há uma semana se queixava de ter sido
vítima disso mesmo, relativamente à sua situação contributiva na Segurança
Social. Qualquer dia, não há ninguém competente que queira ser funcionário
superior do Estado…
Vivemos tempos ameaçadores para a liberdade. Para a liberdade que
começa na porta da minha casa ou na fronteira do meu país — que é onde a liberdade verdadeiramente começa.
Prende-se um ex-primeiro-ministro na porta de um avião, com a
televisão convocada para as primeiras imagens; sem pudor algum, faz-se a
acusação pública dos processos ditos mediáticos na imprensa para tal
disponível, assim promovendo pré-julgamentos populares definitivos; vive-se em
tamanho regabofe de escutas telefónicas que até os serviços secretos fazem
escutas a um jornalista a pedido de uma empresa e as escutas judiciais, mesmo
depois de arquivados os processos ou absolvidos os suspeitos são disponibilizadas
para uso público; pode manter-se suspeitos em prisão preventiva, sem culpa
formada, até um ano (ou mais quatro meses, havendo instrução); o Sindicato do
Ministério Público, cuja magistratura já funciona em roda livre, quer ser
totalmente independente e ainda juntar sob o seu mando a PJ; os dados pessoais
de cada um de nós são livremente “cruzados” e circulam por todas as autoridades
e serviços, mesmo a propósito de uma simples infracção de trânsito; e agora,
sob a capa da transparência, defende-se abertamente a violação do sigilo fiscal
de quem tenha o azar de ser classificado como figura pública. Passo a passo, a
‘democracia de café’ triunfa sobre o Estado de direito. E o seu triunfo
prenuncia tempos cinzentos e perigosos.
A erosão progressiva das liberdades individuais concretas
caminha a par da própria decomposição da democracia. Governos reféns de
entidades alheias e de forças multinacionais sem regras conduzem políticas
contra os interesses nacionais e contra a justiça social, deste modo minando a sua
própria legitimidade democrática e a confiança dos governados nas instituições.
E o vazio assim criado é o terreno ideal para o triunfo da demagogia, do
populismo, e do revanchismo social, que são a antecâmara da ditadura.
Paralisados pelo terror mediático reinante, nenhum poder institucional,
incluindo a imprensa, se atreve a questionar e a pôr em causa estas novas
formas de fazer política. Preferem assistir sentados à minuciosa degradação
daquilo que são os valores fundamentais de um Estado de direito e de uma
sociedade democrática. Alguns são novos demais para se lembrarem da
alternativa, os outros são simplesmente cobardes." (Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 21/03/2015)
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