quinta-feira, 17 de outubro de 2013

DN - Mário Soares - Opinião breve sobre Hannah Arendt e outros. Recomenda-se!

Síntese - Nesta sua opinião, Mário Soares fala sobre 5 temas: "Hannah Arendt", "Dois homens excecionais", "O Centenário de Camus", "A Igreja portuguesa" e "Um Homem de honra e de coragem". Recomenda-se.

1. Há muito tempo que não ia ao cinema, embora goste muito de ir ao cinema. Mas as obrigações, depois a doença, impediram-me de ir.
No entanto, há poucos dias fui, porque se tratava do filme excecional sobre Hannah Arendt, de quem sou, há muitos anos, um fã e da qual tenho muitos livros.
Não me arrependi. Fui com a minha mulher, que é uma leitora dessa judia alemã antinazi, que se refugiou na América, depois de ter conhecido um campo de concentração em que os nazis torturavam os judeus, levando-os à morte...
O problema da filósofa Hannah Arendt era o mal absoluto e a consciência, ou não, do mal, a propósito de o nazi Eichmann estar a ser julgado no pós-guerra, em Israel, por ter servido Hitler e ser responsável pela morte de milhares de judeus, a mando de Hitler, de Himmler ou de qualquer outro chefe nazi. Mas teve ele a consciência do mal? Eis o problema. Ou obedeceu às ordens que lhe deram, sem ter a consciência do mal que ia praticar? Eis a reflexão de uma filósofa, discípula e namorada do professor Heidegger (que também teve algumas culpas no cartório, em matéria de nazismo). O mal e a culpa, ou não, da consciência do mal foram alguns dos problemas que amarguraram a filósofa, que seguiu o julgamento com extrema atenção. No fim da vida, teve os judeus da América, na generalidade, contra ela, quando a independência de Israel acabava de ocorrer.
O filme é uma obra-prima, com a atriz principal (Barbara Sukowa, que interpreta Hannah Arendt magistralmente), praticamente, sempre em cena a fumar. Um filme notável, para ver e refletir, em exibição no cinema do El Corte Inglés.
2. DOIS HOMENS EXCECIONAIS Num mundo em crise e com o universo muçulmano em guerra, com a Al-Qaeda de novo agitada, há - é o que nos vale - dois homens excecionais: Barack Obama, Presidente dos Estados Unidos, no segundo mandato, e o Papa Francisco, amigo dos pobres, contra a corrupção no Vaticano, corajoso - a um ponto em que, pessoas como eu, temem pela sua vida.
São dois homens bem distintos que assumem a liberdade, a fraternidade entre as pessoas e, tanto quanto possível, a igualdade entre homens e mulheres.
Nunca tive a honra de conhecer pessoalmente nenhum deles. Mas são, para mim, dois símbolos que muito admiro e que me esforço por seguir.
Obama é um político admirável, com uma imensa cultura, como transparece dos seus discursos, e um homem de paz. Teve dois gestos admiráveis recentemente: fazer as pazes com o Irão e reconciliar-se com a Rússia de Putin, com a ajuda preciosa de Kerry.
O Papa Francisco, que veio da Argentina mas fala correntemente italiano - onde estão as suas raízes -, é um Papa de uma bondade, de um afeto pelos pobres, de uma humildade e de uma abertura a todas as religiões, desde que sejam pela paz, de que, penso, não há memória, não obstante os excelentes papas que conheci pessoalmente.
Não sou religioso, como se sabe, mas não perco nenhuma notícia ou nenhum livro deste Papa que me passe pelas mãos.
Enquanto estas duas personalidades existirem, podemos ter alguma confiança no futuro, mesmo perante a crise terrível na Zona Euro. Barack Obama sabe bem que a Europa é constituída por Estados em que pode ter absoluta confiança como os únicos amigos fiéis que tem a América. Nunca deixará cair a Zona Euro, porque isso seria uma catástrofe também para a América.
Quanto ao Papa Francisco, que fala para os pobres - e hoje é ouvido e respeitado em todo o mundo -, não esquece as outras religiões nem a igualdade entre homens e mulheres. A sua ida ao Brasil criou uma emoção única num enorme país, dos maiores do mundo em superfície: desde os velhos aos jovens, de todos os estados do imenso Brasil, todos quiseram saudar e, simplesmente, ver o Papa Francisco.
É certo que o Brasil é um país católico - mas com muitas outras religiões e seitas, mais ou menos protestantes, que têm vindo a penetrar no Brasil e a obter indevidamente muito dinheiro. Mas nem esses puderam evitar e aparecer, tanto quanto possível, junto do Papa, de tal modo foi o entusiasmo que a sua visita provocou, sobretudo nos jovens. Um caso absolutamente único este Papa. Oxalá - diz um não religioso como eu - o tenhamos, em boa saúde, por muitos anos.
3. O CENTENÁRIO DE CAMUS Muitos jovens intelectuais portugueses, mesmo alguns mais velhos, não saberão dizer quem é Albert Camus. O grande escritor e intelectual francês, diretor do jornal Combat, resistente contra os nazis, figura moral e política do pós-guerra e prémio Nobel da Literatura em 1975 que, se fosse vivo, completaria a 7 de novembro de 2013 cem anos.
Foi uma das grandes figuras de intelectuais, morais e literárias, que mais me marcaram no pós-guerra de 1945. Ao lado de Sartre e da romancista Simone de Beauvoir, sua mulher, que escreveu um livro para mim inesquecível, intitulado Les Mandarins.
Não tive a honra de o conhecer pessoalmente, como sucedeu com muitos outros, como Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre e outros grandes da época, como o ainda vivo Edgar Morin.
Camus viveu três guerras: a guerra de Espanha (ao lado dos republicanos, obviamente); a Segunda Guerra Mundial e, depois, a Guerra da Argélia, onde nasceu, filho de pai meio espanhol. Tinha, aliás, um grande fraco pela Espanha. Casou--se com uma espanhola ilustre, Maria Casarès, artista de teatro de grande mérito, cujo pai foi uma figura da Guerra de Espanha, de seu nome Santiago Casarès Quiroga, galego e primeiro-ministro de Azaña.
Maria Casarès era uma atriz e uma linda mulher, que fez em França, no exílio, uma grande carreira artística e teve até ao fim um grande carinho por Camus, com o qual julgo ter-se casado ou vivido.
Entre as suas obras contam-se: Révolte dans les Asturies, L"envers et l"endroit, Reflexão sobre a Guilhotina, O Estrangeiro, Os Justos, uma peça em cinco atos. A Peste, O Homem Revoltado e muitos outros romances, contos e variadíssimas peças de teatro, ensaios, etc. Foi um extraordinário escritor.
Prezo-me de ter um grande amigo, o escritor, jornalista e também nascido na Argélia, Jean Daniel, que foi um amigo e companheiro de Camus, que nunca o esqueceu.
É o diretor do Nouvel Observateur que não perde uma ocasião para escrever sobre Camus, cuja memória tem sempre presente.
Ficámos amigos porque Jean Daniel, e a sua esposa, seguiram a revolução portuguesa do 25 de Abril e acompanharam-me em muitas viagens de propaganda do PS, por todo o País. Sempre bem dispostos e encantados.
Nesse período falaram-me muito de Camus, cuja obra eu, mais ou menos, conhecia. Mais os romances do que as obras de teatro ou os ensaios. E contaram-me muitas coisas sobre ele, desse tempo, do pós-guerra, que me ficaram na memória, em que eu começava a deixar de ser adolescente.
Fiquei um leitor fiel do Nouvel Observateur. E ainda no último número li um artigo de fundo de Jean Daniel intitulado Camus à l" appareil em que conta como se conheceram.
Vai ser - como lhe é devido - um centenário inesquecível. E seria bom que em Portugal os jovens viessem a conhecer quem foi Camus e a importância literária, moral e política que teve no pós-guerra. Um tempo muito diferente e bem apaixonante...
4. A IGREJA PORTUGUESA O Conselho Permanente da Conferência Episcopal quebrou o longo silêncio em relação à situação dramática que Portugal vive. Felizmente.
A Igreja portuguesa, desde o 25 de Abril, tem sido o que se pode chamar - comparativamente à de Espanha - uma Igreja progressista. Mas depois da mudança do Patriarca, o silêncio passou a ser, ao que parece, a regra. Regra infeliz, desde a existência do novo Papa, que entusiasma crentes e não crentes, pela sua bondade, humildade e amor pelos pobres e pela igualdade entre homens e mulheres e, sobretudo, pela paz, enquanto a Igreja portuguesa esteve longos meses em silêncio.
Felizmente, o Conselho da Conferência Episcopal falou, durante a peregrinação a Fátima, e criticou claramente a situação que os portugueses vivem angustiosamente. Foi um passo que, mesmo para um laico, não deve ser esquecido.
5. UM HOMEM DE HONRA E CORAGEM Refiro-me ao antigo reitor da Universidade de Lisboa e ex-secretário de Estado do Ensino Superior, atual presidente da Comissão Nacional de acesso ao Ensino Superior (CNAES), Virgílio Meira Soares, que teve a coragem de se demitir das suas funções. Porquê? Porque, como disse publicamente, a posição do Governo (cito) "já não é só incompetência - é estupidez, teimosia, miopia ou má-fé". Referia--se às medidas impostas para cortar despesa. E diz que o Executivo (cito de novo) "cria um verdadeiro clima de guerra civil entre grupos sociais". E adiante: "Está sempre a tirar aos mesmos." E mais: "É abjeta a mais recente notícia da TSU das viúvas."
Pode o vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, fazer discursos incompreensíveis para o povo. Ninguém o toma a sério. Por isso, Meira Soares, de quem sou amigo há muitos anos, teve a coragem de se demitir com as palavras que disse. Honra a quem fala verdade e tem coragem de dizer não.

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