Síntese - Nesta sua opinião, Mário Soares fala sobre 5 temas: "Hannah Arendt", "Dois homens excecionais", "O Centenário de Camus", "A Igreja portuguesa" e "Um Homem de honra e de coragem". Recomenda-se.
1. Há muito tempo que não ia ao cinema, embora goste muito de ir ao cinema. Mas as obrigações, depois a doença, impediram-me de ir.
1. Há muito tempo que não ia ao cinema, embora goste muito de ir ao cinema. Mas as obrigações, depois a doença, impediram-me de ir.
No entanto, há poucos dias fui, porque se tratava do filme
excecional sobre Hannah Arendt, de quem sou, há muitos anos, um fã e da qual
tenho muitos livros.
Não me arrependi. Fui com a minha mulher, que é uma leitora dessa
judia alemã antinazi, que se refugiou na América, depois de ter conhecido um
campo de concentração em que os nazis torturavam os judeus, levando-os à
morte...
O problema da filósofa Hannah Arendt era o mal absoluto e a
consciência, ou não, do mal, a propósito de o nazi Eichmann estar a ser julgado
no pós-guerra, em Israel, por ter servido Hitler e ser responsável pela morte
de milhares de judeus, a mando de Hitler, de Himmler ou de qualquer outro chefe
nazi. Mas teve ele a consciência do mal? Eis o problema. Ou obedeceu às ordens
que lhe deram, sem ter a consciência do mal que ia praticar? Eis a reflexão de
uma filósofa, discípula e namorada do professor Heidegger (que também teve
algumas culpas no cartório, em matéria de nazismo). O mal e a culpa, ou não, da
consciência do mal foram alguns dos problemas que amarguraram a filósofa, que
seguiu o julgamento com extrema atenção. No fim da vida, teve os judeus da
América, na generalidade, contra ela, quando a independência de Israel acabava
de ocorrer.
O filme é uma obra-prima, com a atriz principal (Barbara Sukowa,
que interpreta Hannah Arendt magistralmente), praticamente, sempre em cena a
fumar. Um filme notável, para ver e refletir, em exibição no cinema do El Corte
Inglés.
2. DOIS HOMENS EXCECIONAIS Num mundo em crise e com
o universo muçulmano em guerra, com a Al-Qaeda de novo agitada, há - é o que
nos vale - dois homens excecionais: Barack Obama, Presidente dos Estados
Unidos, no segundo mandato, e o Papa Francisco, amigo dos pobres, contra a
corrupção no Vaticano, corajoso - a um ponto em que, pessoas como eu, temem
pela sua vida.
São dois homens bem distintos que assumem a liberdade, a
fraternidade entre as pessoas e, tanto quanto possível, a igualdade entre
homens e mulheres.
Nunca tive a honra de conhecer pessoalmente nenhum deles. Mas são,
para mim, dois símbolos que muito admiro e que me esforço por seguir.
Obama é um
político admirável, com uma imensa cultura, como transparece dos seus discursos, e
um homem de paz. Teve dois gestos admiráveis recentemente: fazer as pazes com o
Irão e reconciliar-se com a Rússia de Putin, com a ajuda preciosa de Kerry.
O Papa
Francisco,
que veio da Argentina mas fala correntemente italiano - onde estão as suas
raízes -, é um Papa de uma bondade, de um afeto pelos pobres, de uma humildade
e de uma abertura a todas as religiões, desde que sejam pela paz, de que,
penso, não há memória, não obstante os excelentes papas que conheci
pessoalmente.
Não sou religioso, como se sabe, mas não perco nenhuma notícia ou
nenhum livro deste Papa que me passe pelas mãos.
Enquanto estas duas personalidades existirem, podemos ter alguma
confiança no futuro, mesmo perante a crise terrível na Zona Euro. Barack Obama
sabe bem que a Europa é constituída por Estados em que pode ter absoluta
confiança como os únicos amigos fiéis que tem a América. Nunca deixará cair a
Zona Euro, porque isso seria uma catástrofe também para a América.
Quanto ao Papa Francisco, que fala para os pobres - e hoje é
ouvido e respeitado em todo o mundo -, não esquece as outras religiões nem a
igualdade entre homens e mulheres. A sua ida ao Brasil criou uma emoção única
num enorme país, dos maiores do mundo em superfície: desde os velhos aos
jovens, de todos os estados do imenso Brasil, todos quiseram saudar e,
simplesmente, ver o Papa Francisco.
É certo que o Brasil é um país católico - mas com muitas outras
religiões e seitas, mais ou menos protestantes, que têm vindo a penetrar no
Brasil e a obter indevidamente muito dinheiro. Mas nem esses puderam evitar e
aparecer, tanto quanto possível, junto do Papa, de tal modo foi o entusiasmo
que a sua visita provocou, sobretudo nos jovens. Um caso absolutamente único
este Papa. Oxalá - diz um não religioso como eu - o tenhamos, em boa saúde, por
muitos anos.
3. O
CENTENÁRIO DE CAMUS Muitos jovens intelectuais portugueses, mesmo alguns mais velhos,
não saberão dizer quem é Albert Camus. O grande escritor e intelectual francês,
diretor do jornal Combat, resistente contra os nazis, figura moral e política
do pós-guerra e prémio Nobel da Literatura em 1975 que, se fosse vivo,
completaria a 7 de novembro de 2013 cem anos.
Foi uma das grandes figuras de intelectuais, morais e literárias,
que mais me marcaram no pós-guerra de 1945. Ao lado de Sartre e da romancista
Simone de Beauvoir, sua mulher, que escreveu um livro para mim inesquecível,
intitulado Les Mandarins.
Não tive a honra de o conhecer pessoalmente, como sucedeu com
muitos outros, como Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre e outros grandes da
época, como o ainda vivo Edgar Morin.
Camus viveu três guerras: a guerra de Espanha (ao lado dos
republicanos, obviamente); a Segunda Guerra Mundial e, depois, a Guerra da
Argélia, onde nasceu, filho de pai meio espanhol. Tinha, aliás, um grande fraco
pela Espanha. Casou--se com uma espanhola ilustre, Maria Casarès, artista de
teatro de grande mérito, cujo pai foi uma figura da Guerra de Espanha, de seu
nome Santiago Casarès Quiroga, galego e primeiro-ministro de Azaña.
Maria Casarès era uma atriz e uma linda mulher, que fez em França,
no exílio, uma grande carreira artística e teve até ao fim um grande carinho
por Camus, com o qual julgo ter-se casado ou vivido.
Entre as suas obras contam-se: Révolte dans les Asturies,
L"envers et l"endroit, Reflexão sobre a Guilhotina, O Estrangeiro, Os
Justos, uma peça em cinco atos. A Peste, O Homem Revoltado e muitos outros
romances, contos e variadíssimas peças de teatro, ensaios, etc. Foi um
extraordinário escritor.
Prezo-me de ter um grande amigo, o escritor, jornalista e também
nascido na Argélia, Jean Daniel, que foi um amigo e companheiro de Camus, que
nunca o esqueceu.
É o diretor do Nouvel Observateur que não perde uma ocasião para
escrever sobre Camus, cuja memória tem sempre presente.
Ficámos amigos porque Jean Daniel, e a sua esposa, seguiram a
revolução portuguesa do 25 de Abril e acompanharam-me em muitas viagens de
propaganda do PS, por todo o País. Sempre bem dispostos e encantados.
Nesse período falaram-me muito de Camus, cuja obra eu, mais ou
menos, conhecia. Mais os romances do que as obras de teatro ou os ensaios. E
contaram-me muitas coisas sobre ele, desse tempo, do pós-guerra, que me ficaram
na memória, em que eu começava a deixar de ser adolescente.
Fiquei um leitor fiel do Nouvel Observateur. E ainda no último
número li um artigo de fundo de Jean Daniel intitulado Camus à l" appareil
em que conta como se conheceram.
Vai ser - como lhe é devido - um centenário inesquecível. E seria
bom que em Portugal os jovens viessem a conhecer quem foi Camus e a importância
literária, moral e política que teve no pós-guerra. Um tempo muito diferente e
bem apaixonante...
4. A IGREJA
PORTUGUESA
O Conselho Permanente da Conferência Episcopal quebrou o longo silêncio em
relação à situação dramática que Portugal vive. Felizmente.
A Igreja portuguesa, desde o 25 de Abril, tem sido o que se pode
chamar - comparativamente à de Espanha - uma Igreja progressista. Mas depois da
mudança do Patriarca, o silêncio passou a ser, ao que parece, a regra. Regra
infeliz, desde a existência do novo Papa, que entusiasma crentes e não crentes,
pela sua bondade, humildade e amor pelos pobres e pela igualdade entre homens e
mulheres e, sobretudo, pela paz, enquanto a Igreja portuguesa esteve longos
meses em silêncio.
Felizmente, o Conselho da Conferência Episcopal falou, durante a
peregrinação a Fátima, e criticou claramente a situação que os portugueses
vivem angustiosamente. Foi um passo que, mesmo para um laico, não deve ser
esquecido.
5. UM HOMEM
DE HONRA E CORAGEM Refiro-me ao antigo reitor da Universidade de Lisboa e
ex-secretário de Estado do Ensino Superior, atual presidente da Comissão
Nacional de acesso ao Ensino Superior (CNAES), Virgílio Meira Soares, que teve
a coragem de se demitir das suas funções. Porquê? Porque, como disse
publicamente, a posição do Governo (cito) "já não é só incompetência - é
estupidez, teimosia, miopia ou má-fé". Referia--se às medidas impostas
para cortar despesa. E diz que o Executivo (cito de novo) "cria um
verdadeiro clima de guerra civil entre grupos sociais". E adiante:
"Está sempre a tirar aos mesmos." E mais: "É abjeta a mais
recente notícia da TSU das viúvas."
Pode o vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, fazer discursos
incompreensíveis para o povo. Ninguém o toma
a sério. Por isso, Meira Soares, de quem sou amigo há muitos anos, teve a
coragem de se demitir com as palavras que disse. Honra a quem fala verdade e tem coragem de dizer não.
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