"A Drª Maria de
Jesus, ou a ‘soutora’
Há momentos
assim em que nos temos de olhar de mais distante, de mais alto, para
compreender o que sempre soubemos: que vidas acabam e nos deixam um vazio que
jamais será preenchido. Que há vozes e expressões que nunca mais ouviremos,
gestos que apenas na nossa memória perduram, memórias que apenas para nós fazem
sentido.
Não sendo
inesperada, porque há 12 dias a esperávamos, é um choque, porque é sempre um
choque descobrir que é verdade a mais antiga lei do mundo. Eu vejo-a, maior do
que eu, as mãos entrelaçadas; depois repousando na enorme varanda de uma casa
(e uma quinta) que era do meu tio Álvaro, onde ela e Mário Soares estavam; na
Índia, em cima do elefante que subia para o forte Amber, em Jaipur, numa visita
oficial do Presidente da República, que era o seu marido; há dias, há poucos
dias, a mostrar-me com o cuidado devido às coisas preciosas uma fotografia sua
com o Papa Francisco. Misturam-se décadas, situações, recordações, mas há a
constante ternura, o afeto, a delicadeza, a discrição, a elegância.
Um dia em que no
Colégio Moderno fomos confrontados com a presença (rara, porque então no
exílio) do Dr. Mário Soares, um dos meus colegas perguntou em voz audível que
nos provocou uma risada: “Então, mas aquele é que o marido da soutora”. Era. E
ficou. Por vezes ainda chamava a Soares “o marido da soutora”, coisa que ele
recebia com um misto de humor e uma ponta de inveja. Sim a Drª Maria de Jesus
calava-nos com um simples olhar…
Nos últimos anos
do liceu éramos esquerdalhos e fazíamos trinta por uma linha e ela, que nunca
fora medrosa, mas sempre prudente, que juntava esses dotes raros – ainda mais
raros quando conjugados – que são a coragem e o bom senso – avisava-nos: “Não
querem que nos fechem o colégio, pois, não?”. Aconselhava-nos não a resignação,
mas a inteligência.
Se é verdade –
porque não sei se é – que por detrás de um grande homem há sempre uma grande
mulher, como se diz, Maria de Jesus Barroso é a ilustração perfeita dessa frase.
Foi, desde
sempre, desde antes de conhecer o marido, na Faculdade de Letras, uma lutadora
contra a ditadura. Era uma atriz de sucesso, a quem o regime retirou o palco;
foi uma declamadora que incendiava plateias com os versos (as mais das vezes
subversivos). Antes de Soares ser mais do que o filho do Dr. João Soares,
ministro da República, pedagogo e fundador do Colégio, foi ela uma voz rebelde,
tão firme quanto serena.
Esta espécie de
força serena acompanhou-a sempre, até à conversão ao catolicismo na sequência
do terrível desastre que, por semanas, deixou entre a vida e a morte João
Soares. Mas nada de substancial nela mudou. A Fé e a Esperança já existiam. A
Caridade, se a entendermos no seu étimo, usar o coração para ajudar os outros,
também. As suas preocupações sociais eram concretas, reais e não teóricas, ao
contrário de tanta gente que ama a humanidade no geral, mas ninguém
pessoalmente. Assim como o seu desejo de paz, que teve influência em África,
nomeadamente em Angola e Moçambique, e a sua feroz condenação de qualquer
violência – o que a levou a ter posições muito críticas para a Comunicação
Social, nomeadamente para as televisões.
Como escrevi no
Facebook e já disse hoje na SIC, Maria de Jesus Barroso é uma mulher de armas.
Esteja onde estiver, é uma mulher de armas. É uma grande senhora, que faz muita
falta ao marido, aos filhos e netos, à família, aos amigos e ao país. É uma reserva
de amizade e de ternura. Tudo isto é escrito por quem fica para sempre
admirador da sua sensatez, capacidade de luta e veracidade. Esteja onde estiver
quero vê-la outra vez, pegar-lhe nas mãos, chamar-lhe soutora e ouvir a sua voz
serena. Ela, para mim, não é a ex-primeira dama, nem a fundadora do PS, nem a
deputada, nem a atriz, nem a fantástica declamadora de poesia. É a minha
professora, a mestra da minha meninice, adolescência, juventude e aquela que
ainda há poucos dias me segredava o orgulho que tinha nos seus alunos, sem
nunca saber o orgulho que todos tínhamos nela. Na sua independência de espírito.
Uma pessoa assim
não morre nem se apaga, fica connosco. Com todos nós, sempre!
Não tenho mais
nem melhores palavras."
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