domingo, 12 de julho de 2015

(O testemunho de H. Monteiro) - A Drª Maria de Jesus, ou a ‘soutora’

"A Drª Maria de Jesus, ou a ‘soutora’

Há momentos assim em que nos temos de olhar de mais distante, de mais alto, para compreender o que sempre soubemos: que vidas acabam e nos deixam um vazio que jamais será preenchido. Que há vozes e expressões que nunca mais ouviremos, gestos que apenas na nossa memória perduram, memórias que apenas para nós fazem sentido.
Não sendo inesperada, porque há 12 dias a esperávamos, é um choque, porque é sempre um choque descobrir que é verdade a mais antiga lei do mundo. Eu vejo-a, maior do que eu, as mãos entrelaçadas; depois repousando na enorme varanda de uma casa (e uma quinta) que era do meu tio Álvaro, onde ela e Mário Soares estavam; na Índia, em cima do elefante que subia para o forte Amber, em Jaipur, numa visita oficial do Presidente da República, que era o seu marido; há dias, há poucos dias, a mostrar-me com o cuidado devido às coisas preciosas uma fotografia sua com o Papa Francisco. Misturam-se décadas, situações, recordações, mas há a constante ternura, o afeto, a delicadeza, a discrição, a elegância.
Um dia em que no Colégio Moderno fomos confrontados com a presença (rara, porque então no exílio) do Dr. Mário Soares, um dos meus colegas perguntou em voz audível que nos provocou uma risada: “Então, mas aquele é que o marido da soutora”. Era. E ficou. Por vezes ainda chamava a Soares “o marido da soutora”, coisa que ele recebia com um misto de humor e uma ponta de inveja. Sim a Drª Maria de Jesus calava-nos com um simples olhar…
Nos últimos anos do liceu éramos esquerdalhos e fazíamos trinta por uma linha e ela, que nunca fora medrosa, mas sempre prudente, que juntava esses dotes raros – ainda mais raros quando conjugados – que são a coragem e o bom senso – avisava-nos: “Não querem que nos fechem o colégio, pois, não?”. Aconselhava-nos não a resignação, mas a inteligência.
Se é verdade – porque não sei se é – que por detrás de um grande homem há sempre uma grande mulher, como se diz, Maria de Jesus Barroso é a ilustração perfeita dessa frase.
Foi, desde sempre, desde antes de conhecer o marido, na Faculdade de Letras, uma lutadora contra a ditadura. Era uma atriz de sucesso, a quem o regime retirou o palco; foi uma declamadora que incendiava plateias com os versos (as mais das vezes subversivos). Antes de Soares ser mais do que o filho do Dr. João Soares, ministro da República, pedagogo e fundador do Colégio, foi ela uma voz rebelde, tão firme quanto serena.
Esta espécie de força serena acompanhou-a sempre, até à conversão ao catolicismo na sequência do terrível desastre que, por semanas, deixou entre a vida e a morte João Soares. Mas nada de substancial nela mudou. A Fé e a Esperança já existiam. A Caridade, se a entendermos no seu étimo, usar o coração para ajudar os outros, também. As suas preocupações sociais eram concretas, reais e não teóricas, ao contrário de tanta gente que ama a humanidade no geral, mas ninguém pessoalmente. Assim como o seu desejo de paz, que teve influência em África, nomeadamente em Angola e Moçambique, e a sua feroz condenação de qualquer violência – o que a levou a ter posições muito críticas para a Comunicação Social, nomeadamente para as televisões.
Como escrevi no Facebook e já disse hoje na SIC, Maria de Jesus Barroso é uma mulher de armas. Esteja onde estiver, é uma mulher de armas. É uma grande senhora, que faz muita falta ao marido, aos filhos e netos, à família, aos amigos e ao país. É uma reserva de amizade e de ternura. Tudo isto é escrito por quem fica para sempre admirador da sua sensatez, capacidade de luta e veracidade. Esteja onde estiver quero vê-la outra vez, pegar-lhe nas mãos, chamar-lhe soutora e ouvir a sua voz serena. Ela, para mim, não é a ex-primeira dama, nem a fundadora do PS, nem a deputada, nem a atriz, nem a fantástica declamadora de poesia. É a minha professora, a mestra da minha meninice, adolescência, juventude e aquela que ainda há poucos dias me segredava o orgulho que tinha nos seus alunos, sem nunca saber o orgulho que todos tínhamos nela. Na sua independência de espírito.
Uma pessoa assim não morre nem se apaga, fica connosco. Com todos nós, sempre!

Não tenho mais nem melhores palavras."

Sem comentários:

Enviar um comentário