Então como é? O país está mal ou não está? Está. Então deixem-se de
salamaleques politicamente correctos.
A língua
portuguesa está cheia de palavras certíssimas para designar quase todas as
cambiantes do comportamento humano. Escritores como Vieira, Bernardes, Camilo,
Eça e Aquilino, levaram-na tão longe, que em português tudo se pode dizer,
todas as infinitas flutuações das pessoas encontram uma ágil palavra para as
designar.
Agora que a nossa bela língua está a ser
atacada por todos os lados, na sua ortografia, na sua complexidade vocabular,
na sua riqueza expressiva, é sempre bom encontrar um refúgio nos falares
antigos, ou naqueles que pouco a pouco estão a ser esquecidos por falta de uso.
A semana passada falei de “tresvaliar”, palavra de Sá de Miranda, e esta semana
Fernando Alves na TSF fez uma crónica sobre “surdir”, palavra usada por Camilo
(sempre ele) e Eça, tudo palavras esquecidas.
O que se passa
hoje é como se, invisivelmente, se estivesse a realizar uma das funções
essenciais que Orwell atribuía ao Big Brother, que era tirar todos os anos
algumas palavras de circulação, porque sabia que é mais fácil controlar pessoas
cujo vocabulário é restrito e que, por isso, tem dificuldades em expressar-se
com clareza e riqueza e, em consequência, dominam menos o mundo em que vivem. O
incremento de formas de expressão quase guturais como os SMS e o Twitter,
apenas dá expressão a um problema mais de fundo que é desertificação do
vocabulário, fruto de pouca leitura, e de um universo mediático muito pobre e
estereotipado. Salva-nos o senhor Vice-Primeiro Ministro Portas que anda para
aí a dizer que as “exportações estão a bombar”, convencido que ninguém o acha
ridículo no seu afã propagandístico. Viva o Big Brother!
Tudo isto vem a
propósito da palavra que mais me veio à cabeça – bem sei que uma cabeça muito
deformada pelo “ressabiamento” por este governo não me ter dado um cargo
qualquer – quando ouvi o debate parlamentar com o Primeiro-ministro na
sexta-feira passada. Como ele está lampeiro com a verdade! Lampeiro é a palavra
do dia.
Lampeiros com a
verdade, neste governo e no anterior, há muitos. Sócrates é sempre o primeiro
exemplo, mas Maria Luís Albuquerque partilha com ele a mesma desenvoltura na
inverdade, como se diz na Terra dos Eufemismos. E agora Passos deu um curso
completo dentro da nova tese de que tudo que se diz que ele disse é um mito
urbano. Não existiu. Antes, no tempo do outro, era a ”narrativa”, agora é o
“mito urbano”.
Aconselhar os
portugueses a emigrar? Nunca, jamais em tempo algum. Bom, talvez tenha dito aos
professores, mas os professores não são portugueses inteiros. Bom, talvez tenha
dito algo de parecido, mas uma coisa é ser parecido, outra é ser igual. Igual
era se eu dissesse “emigrai e multiplicai-vos” e eu não disse isso. Nem ninguém
no “meu governo”. Alexandre Mestre era membro do Governo? Parece que sim,
secretário de Estado do Desporto e disse: "Se estamos no desemprego, temos de sair da zona de conforto
e ir para além das nossas fronteiras". Como “sair da sua zona de conforto”
é uma das frases preferidas do Primeiro-ministro, e a “zona de conforto” é uma
coisa maléfica e preguiçosa, vão-se embora depressa. E Relvas, o seu alter-ego
e importante dirigente partidário do PSD de 2015, então ministro, não esteve
com meias medidas: “é
extraordinariamente positivo” “encontrar
[oportunidades] fora do seu país” e ainda por cima, “pode fortalecer a sua formação”.
Resumindo e concluindo: “Procurar
e desafiar a ambição é sempre extraordinariamente importante".
Parece um coro grego de lampeiros.
Continuemos. A
crise não atingiu os mais pobres porque “os portugueses com rendimentos mais
baixos não foram objecto de cortes”, disse, lampeiro, Passos Coelho. Estou a ouvir bem? Sim, estou.
Contestado pela mentirosa afirmação, ele continua a explicar que os cortes no
RSI foram apenas cortes na “condição de acesso ao RSI” e um combate à fraude. A
saúde? Está de vento em popa, e quem o contraria é o “socialista” que dirige um
“observatório” qualquer.
Sobre os cortes nos subsídios de desemprego e no
complemento solidário de idosos, nem uma palavra, mas são certamente justas
medidas para levarem os desempregados e os velhos a saírem da sua “zona de conforto”.
Impostos? O IVA não foi aumentado em Portugal, disse Passos Coelho com firmeza.
Bom, houve alterações no cabaz de produtos e serviços, mas o IVA, essa coisa
conceptual e abstracta, permaneceu sem mudança, foi apenas uma parte. Então a
restauração anda toda ao engano, o IVA não aumentou? E na luz, foi um erro da
EDP e dos chineses? Lampeiro.
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