Goste-se ou odeie-se José Sócrates, há um
mínimo que se deve a um homem: respeito pela sua dignidade, pela sua coerência
e pela sua coragem. A carta em que o ex-primeiro-ministro
socialista recusa deixar a prisão em Évora para passar a prisão domiciliária
com uma pulseira eletrónica por proposta do Ministério Público fez-me lembrar
os versos imortais de Rudyard Kipling no seu poema «Se»: (…) Se és capaz de
sofrer a dor de ver mudadas / em armadilhas as verdades que disseste / E as
coisas, por que deste a vida estraçalhadas / e refazê-las com o bem pouco que
te reste. / Se és capaz de arriscar numa única parada, / tudo quanto ganhaste
em toda a tua vida. / E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada, / resignado,
tornar ao ponto de partida (…).
Goste-se ou odeie-se Sócrates, é difícil
não concordar com ele quando diz que se passaram seis meses sem
acusação e sem acesso aos autos. Ou quando refere aquilo que se pressente:
que a prisão preventiva, dele e dos outros arguidos da Operação Marquês foi
usada «para investigar, para despersonalizar, para quebrar, para calar, para
obter ‘confissões’».
Não, Sócrates não é um Mandela que
passou 27 anos na prisão de Robben Island. Não está a lutar pela independência
de um país mas pela sua inocência. Tem muito que explicar relativamente às
entregas em dinheiro vivo feitas pelo seu amigo Carlos Santos Silva. Não é
normal uma pessoa com o seu estatuto viver à conta de vultuosos empréstimos em
«cash», que lhe eram entregues sem passar pelo setor bancário. Mas tem de se
reconhecer que é preciso coragem para tomar a decisão que anunciou: «Meditei
longamente nesta decisão, no que ela significa de sacrifício pessoal e,
principalmente, no sacrifício que representa para a minha família e para os
meus amigos, que têm suportado esta inacreditável situação com uma
inacreditável coragem. Todavia, o critério de decisão é simples – ela tem de
estar de acordo com o respeito que devo a mim próprio e com o respeito que devo
aos cargos públicos que exerci. Nas situações difíceis há sempre uma
escolha. A minha é esta: digo não.»
Goste-se ou odeie-se Sócrates, seja ele
culpado ou não, este é uma declaração marcante em apenas quatro parágrafos. Ou
como escreveu Kipling: «(…) De forçar coração, nervos, músculos, tudo, / a dar
seja o que for que neles ainda existe. (…) / E a persistir assim quando,
exausto, contudo, / resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste! / (…)
Se és capaz de dar, segundo por segundo, / ao minuto fatal todo valor e brilho.
/ Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo, / e - o que ainda é muito mais
- és um Homem, meu filho!».
O juiz de instrução Carlos Alexandre tem
agora a batata quente nas mãos: ou mantém Sócrates na prisão ou o envia
para casa sem pulseira eletrónica, mas com um polícia à porta. Haverá ainda
risco de fuga? Ou de perturbação do inquérito? As investigações conduzidas
laboriosamente desde há mais de um ano meio pelo procurador Rosário Teixeira
ainda não conseguiram os meios de prova para acusar o ex-primeiro-ministro de
corrupção por ato ilícito? Ainda não foi possível provar que os 23 milhões de
Carlos Santos Silva são de Sócrates? Que Carlos Santos Silva é um mero testa de
ferro? E que no esquema montado estão envolvidos, sem margem para dúvidas, o
vice-presidente do Grupo Lena, Joaquim Barroca Henriques, o empresário Helder Bataglia
e o administrador da farmacêutica Octapharma, Paulo Lalanda Castro? Quanto
tempo será necessário esperar mais para ser conhecida a acusação e os seus
fundamentos?
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