(in Expresso de 28/02/2015) |
Uma
amiga minha, amiga verdadeira, aconselhou-me, há dois meses, a não escrever
mais sobre José Sócrates, porque “fazeres a defesa dele agora arruína toda a
credibilidade que conquistaste para ti”.
Durante dois meses, de facto, não
escrevi — não porque o conselho dela me tenha parecido adequado, mas porque,
depois de ter criticado as circunstâncias em que se verificou a sua prisão, os
pressupostos em que assentou a decisão de prisão preventiva e a escabrosa
campanha de linchamento popular em alguns jornais, entendi que era altura de
ficar à espera para ver como evoluía o processo.
Passado este tempo, e numa
altura em que a lei manda que o juiz de instrução reveja a situação, também eu
vou fazer idêntico exercício.
Fazendo-o,
sou obrigado a reconhecer que a conveniência e a prudência nunca foram virtudes
de que me possa gabar. Mas se “fazer a defesa de José Sócrates” (que não é o
que eu faço, mas já lá irei) não é conveniente nem prudente e pode arruinar a
minha “credibilidade”, qualquer que ela seja, vejo-o como um dano colateral:
pagam-me para dizer o que penso.
E mal andaria o mundo (e anda!), se,
justamente quando é mais difícil remar contra a verdade e a justiça
estabelecidas, todos optassem pela prudência e pela conveniência. Quem
defenderia aquilo ou aqueles cuja defesa é inconveniente?
Três
meses depois, o meu ponto de partida é o mesmo de então: não sei, não faço
ideia e não tenho maneira de saber se as gravíssimas acusações que pendem sobre
José Sócrates são verdadeiras ou falsas. Mas não é isso que está em causa
agora: eu não faço a defesa de José Sócrates, faço a análise sobre as
circunstâncias da sua prisão preventiva e de tudo o que tem acontecido à volta
dela. Não é a inocência ou a culpabilidade de José Sócrates — que só se apurará
em julgamento — que agora interessa: é o funcionamento do Estado de direito. E
isso não é coisa pouca.
Creio
que uma imensa maioria dos portugueses julgará, nesta altura, que José Sócrates
está muito bem preso. E por três ordens de razões diversas: uns, porque
abominam politicamente Sócrates e acreditam que foi ele sozinho que criou 170
mil milhões de dívida pública (hoje, 210 mil milhões), assim conduzindo o país
à ruína; outros, porque acreditam que o “Correio da Manhã”, o “Sol” ou o “i”
são uma fonte credível de informação e, portanto, já nem precisam de julgamento
algum em tribunal, porque a sentença já está dada; e outros, porque, mesmo não
emprenhando pelos ouvidos dos pasquins ao serviço da acusação, acreditam mesmo
na culpabilidade de Sócrates e, por isso, a sua prisão preventiva parece-lhes
aceitável.
Porém, nenhum destes três grupos tem razão: o primeiro, porque
confunde um julgamento político com um julgamento penal, assim fazendo de
Sócrates um preso político; o segundo, porque prescinde de um princípio básico
de qualquer sistema de justiça, que é o do contraditório e do direito à defesa
do acusado: basta-lhes a tese da acusação para se darem por elucidados e
satisfeitos; e o terceiro, porque ignora a diferença fundamental entre a fase
de inquérito processual e a fase de julgamento. O erro destes últimos (que são
os únicos sérios na sua apreciação) é esquecer que a presunção ou convicção de
culpabilidade do arguido por parte do juiz de instrução, as suspeitas, os
indícios ou as provas que o processo possa conter, não servem de fundamento à
prisão preventiva. Se assim fosse, a fase de inquérito seria um pré-julgamento,
com uma pré-sentença e uma pena anterior à condenação em julgamento: a pena de
prisão preventiva. Que é coisa que a lei não prevê nem consente e que, a meu
ver, é aquilo que o juiz Carlos Alexandre aplicou a José Sócrates e a Carlos
Santos Silva.
As
coisas estão a ficar perigosas. Eu não votarei em quem não prometa pôr fim a
esta paródia do Estado de direito
A
lei consente apenas quatro casos em que o juiz de instrução pode decretar a
prisão preventiva de um arguido: a destruição de provas, a perturbação do
processo, o perigo de fuga ou o alarme social causado pela permanência em
liberdade. Sendo esta a medida preventiva mais grave e de carácter
absolutamente excepcional (visto que se está a enfiar na prisão quem ainda não
foi julgado e pode muito bem estar inocente), a liberdade de decisão do juiz
está taxativamente limitada a estas quatro situações e nada mais.
Não interessa
rigorosamente nada que o juiz possa estar absolutamente convencido da culpabilidade
do arguido: ou existe alguma daquelas quatro situações ou a prisão preventiva é
ilegal. (E convém recordar que, ao contrário daquilo que as pessoas foram
levadas a crer, o juiz de instrução não é parte acusatória, mas sim
equidistante entre as partes: cabe-lhe zelar tanto pela funcionalidade da
acusação como pelos direitos do arguido).
A
esta luz, é difícil ou impossível enxergar em qual dos quatros fundamentos se
abrigará Carlos Alexandre para manter Sócrates e Santos Silva em prisão
preventiva. O perigo de destruição de provas é insustentável, depois de
revistadas as casas dos arguidos, apreendidos os computadores, escutadas as
chamadas telefónicas durante mais de um ano. O perigo de perturbação do
processo (“fabricando contratos”, como foi veiculado para a imprensa) tanto
pode ser consumado em casa como na prisão, através do advogado ou por outros
meios. O perigo de fuga, para quem se entregou voluntariamente à prisão, tem o
passaporte apreendido e pode ser mantido sob vigilância visual e de pulseira
electrónica em casa, só pode ser invocado de má fé. E o alarme social, só se
for nas páginas do “Correio da Manhã”.
A avaliar por aquilo que nos tem sido
gentilmente divulgado, o dr. Carlos Alexandre não tem uma razão válida para
manter os arguidos em prisão preventiva. E mais arrepiante tudo fica quando se
torna evidente que o motorista de Sócrates só foi preso para ver se falava, e
foi solto, ou porque disse o que o MP queria (verdadeiro ou falso) ou porque
perceberam que não tinha nada para dizer. Ou quando a SIC, citando fontes do
processo, nos conta que uma das razões para que a prisão preventiva de Carlos
Silva fosse prorrogada por mais três meses foi o facto de ele não ter prestado
quaisquer declarações quando chamado a segundo interrogatório por Rosário
Teixeira. Se isto é verdade, quer dizer que estes presos preventivos não o
foram apenas para facilitar a investigação (o que já seria grave), mas para ver
se a prisão os fazia falar. Nada que cause estranheza a quem costuma acompanhar
os processos-crime, onde a auto-incriminação dos suspeitos — por escutas ou por
confissão — é quase o único método investigatório que a incompetência do MP
cultiva (e, depois da transcrição da escuta feita a Paulo Portas no processo
dos submarinos, ficámos a saber que a incompetência pode não ser apenas
inocente, mas malévola e orientada).
Dizem-nos
agora os suspeitos habituais que a prorrogação da prisão preventiva daqueles
dois arguidos, requerida pelo MP e fatalmente acompanhada pelo juiz, se ficará
a dever à chegada de novos factos ou novas “provas” ao processo — o que, em si
mesmo, contradiz o fundamento da prisão baseado em potencial destruição de
provas.
Pior ainda é se essas tais “novas provas” não são mais, como consta
noutras fontes, do que os dados bancários da conta de Santos Silva na Suíça,
cuja chegada ao processo o MP terá atrasado deliberadamente durante um ano,
justamente para as poder usar no timing adequado para fundamentar a prorrogação
da prisão preventiva. Porque ninguém duvida de que tanto o procurador como o
juiz estão dispostos a levar a prisão até ao limite absurdo de um ano, sem
acusação feita.
Que a tudo isto — mais a já inqualificável
violação do segredo de justiça, transformado numa espécie de actividade
comercial às claras — se assista em silêncio, com a procuradora-geral a
assobiar ao vento e o Presidente da República, escudado na desculpa da
separação de poderes, fingindo que nada disto tem a ver com o regular
funcionamento das instituições, que lhe cabe garantir, enquanto se discute, nem
sequer a pena ilegal de prisão preventiva, mas a pena acessória de humilhação
de um homem que foi duas vezes eleito pelos portugueses para chefiar o Governo
e que agora se bate pelo direito de usar as botas por ele escolhidas e ter um
cachecol do Benfica na cela, é sinal do estado de cobardia cívica a que o país
chegou. As coisas estão a ficar perigosas. Eu não votarei em quem não prometa
pôr fim a esta paródia do Estado de direito.
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